quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A gratuitidade no ensino pré-universitário

Os tempos de compressão nos orçamentos públicos que vivemos, no nosso país e um pouco por toda a europa, são propícios à relativização de alguns direitos, tidos por garantidos. (...)

Não cabe aqui discernir sobre as razões de ser desta forma que o Estado encontrou para reduzir a despesa pública e financiar a sua atividade – que oscilam entre abordagens claramente ideológicas e motivos fundados na mais pura racionalidade económica –, valendo apenas mencionar, à laia de reflexão, que é difícil sustentar a cobrança de impostos elevados, quando quem os paga não encontra um determinado nível de satisfação que compense o seu esforço contributivo.

Gratuitidade absoluta e gratuitidade relativa no ensino de nível não superior

Neste contexto, a frequência da escolaridade obrigatória que, em Portugal, abrange, desde a Lei n.º 85/2009, todas “as crianças e jovens que se encontram em idade escolar” (artigo 1.º), que corresponde às “idades compreendidas entre os 6 e os 18 anos” (artigo 2.º), é universal e gratuita (artigo 3.º).

Parece assim que pelo menos estes níveis de ensino – que integram, seguindo a lógica etária típica, o ensino básico e o secundário ministrado em estabelecimentos da rede pública e escolas privadas com contratos de associação – escapam à tendência generalizada para a introdução de copagamentos em algumas funções sociais do Estado.

Já aqui referi, a propósito do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (Decreto-Lei n.º 152/2013) para a introdução da noção de copagamentos, ajustados “à condição económica do agregado familiar”, para os designados contratos simples de apoio à família, e em que medida essa possibilidade colide com o princípio da gratuitidade.

No entanto, vemos com dificuldade uma modificação substancial deste princípio, desde logo porque uma decisão de política pública nesse sentido colidiria com um conjunto de instrumentos de direito internacional, que na nossa ordem jurídica são de aplicação direta, e com os preceitos constitucionais que regem esta matéria.

De facto, a gratuitidade do ensino obrigatório consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 26.º), do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais (artigos 13.º e 14.º), da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Direitos das Crianças (artigo 28.º), da Carta Social Europeia (artigo 17.º), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 14.º) e da Diretiva 77/486/CEE, que estende este princípio à escolarização dos filhos dos trabalhadores migrantes oriundos de Estados-membros da União Europeia.

A estas normas de direito internacional, transpostas para o Direito português onde operam como autêntica «lei a aplicar», junta-se o preceito contido no artigo 74.º da Constituição, que consagra uma garantia absoluta nesta matéria e que impede uma interpretação flexível do princípio da gratuitidade no ensino obrigatório.

O ensino pré-escolar

Já a realidade do ensino pré-escolar é um pouco diferente. A Lei n.º 85/2009 limita a sua universalidade a “todas as crianças a partir do ano em que atinjam os 5 anos de idade”, assegurando que “essa frequência se efetue em regime de gratuitidade da componente educativa” (artigo 4.º).

Ou seja, o Estado coloca o ensino pré-escolar fora do ensino obrigatório. Trata-se de uma opção algo discutível, tendo em conta a idade das crianças abrangidas por esse nível de pré-escolarização: “entre os 3 anos e a idade de ingresso no ensino básico”, de acordo com o artigo 3.º da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (Lei n.º 5/97).

Mas, mais importante para o tema, só assegura o financiamento integral da chamada componente educativa – 25 horas semanais - não assegurando a gratuitidade da componente de complemento e apoio à família, que integra as refeições escolares e as atividades desenvolvidas para além das 5 horas diárias educativas (comummente designado por prolongamento de horário).

Para estes complementos vigora um sistema de comparticipação (embora a realidade varie consoante os concelhos, porque algumas câmaras municipais suportam integralmente os custos com o prolongamento de horário) que tem em conta o rendimento per capita do agregado familiar, num sistema aproximado ao seguido pelas estipulações atribuídas aos acordos de cooperação, celebrados entre o Ministério da Segurança Social e as Instituições Particulares de Solidariedade Social para o apoio à infância.

Podemos falar, assim, de um sistema de gratuitidade relativa, assente numa rede pública composta por estabelecimentos públicos e em estabelecimentos convencionados, a funcionar na vasta rede de escolas particulares e cooperativas e nas IPSS.

Quem paga a educação?

Como é lógico, os custos da educação vão muito para além dos montantes necessários a assegurar o funcionamento das escolas e a remuneração dos seus recursos humanos. No nosso sistema público, simplificando um pouco, o ensino obrigatório é suportado pelo Estado, pelas autarquias locais e pelos encarregados de educação, estes na componente extraescolar. Existem também, em valor cada vez mais expressivo, respostas educativas pagas por fundos oriundos da União Europeia e, em muito menor escala, por financiamentos privados de origem diversa.

Uma explicação da arquitetura jurídico-institucional do sistema de financiamento exige um artigo que lhe seja inteiramente dedicado, dada a sua complexidade.

De igual modo, falar de gratuitidade do ensino obrigatório também é falar dos apoios prestados a alunos com carências económicas, materializados no desenvolvimento da ação social escolar e em apoios de outro tipo e iniciativa (como, por exemplo, bolsas de manuais escolares ou sistemas de universalização do acesso à fruição desportiva e cultural) que são fundamentais, na ótica dos utentes, e raramente discutidos com a profundidade e amplitude que merecem. Naturalmente procurarei, logo que possível, regressar a estes temas.
Tiago Saleiro
 
Fonte: Educare

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