quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Quando a escola pública também é um lugar de encontro com a arte

“Leão”. “Felicidade”. “Malabarismo”. Cada criança escolhe uma palavra que resuma o universo dos palhaços. Algumas repetem-se, mas há quase tantas quantos os 19 alunos desta turma. Pouco depois, em grupos de três ou quatro, fazem pequenas dramatizações a partir do mesmo mote. Veremos leões a precisar de domador, andares desengonçados. Muitas caretas. A professora é uma mulher feliz: “Sinto neles uma grande alegria por estarem a fazer isto. É como se visse as emoções a saltar”.


Ana Sofia Freitas dá aulas de expressões artísticas a estes alunos da EB1 do Alto da Bandeira, em Guimarães, desde o início do ano letivo. Tem outras quatro turmas nas Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC) do 1.º ciclo, fruto de um projeto pioneiro da autarquia que está a levar o ensino artístico às escolas. Depois de ter sido Capital da Cultura, em 2012, e tendo em conta a diversidade e qualidade dos equipamentos culturais de a cidade dispõe, havia a “responsabilidade de levar a cultura aos alunos”, defende a vereadora da Educação, Adelina Paula Pinto. Por estarem na responsabilidade direta do município, as AEC foram a “forma mais ágil” de o fazer.

O projeto chama-se Mais Dois e centra-se no teatro e na dança. Apesar de já ter havido outras iniciativas de ensino artístico em escolas públicas nacionais, esta é a primeira vez em que a iniciativa é feita tendo por base as AEC. A proposta é transformar estas atividades “em algo mais interessante do que aquilo que elas têm sido”, diz a vereadora da Educação. O objetivo do programa é duplo. Por um lado, “construir uma sensibilidade para as artes, a partir da escola” e, por outro, “construir melhores condições de aprendizagem, a partir do desenvolvimento do próprio aluno”, explica Elisabete Paiva, diretora do serviço educativo da cooperativa municipal A Oficina — a mesma estrutura que gere Centro Cultural Vila Flor e o Centro de Internacional de Artes José de Guimarães —, que é parceira desta iniciativa. “Não vamos formar artistas”, avisa. Nem as artes serão mero instrumento para melhorar os resultados escolares dos alunos.

Este é o “ano zero” do Mais Dois, assumindo um caráter de projeto-piloto que deve servir de base para um modelo de trabalho a quatro anos — e que será avaliado por uma equipa de investigadores da Universidade do Minho. Todavia, mesmo em momento de lançamento, este ano há já mais de 1600 estudantes envolvidos, o que representa cerca de um terço da população do 1.º ciclo no concelho de Guimarães, em sete dos 14 agrupamentos de escolas do concelho.

Além das aulas, o programa inclui também duas atividades ao longo do ano letivo que implicam o contacto direto dos alunos com artistas: uma saída para assistir a um espetáculo em auditório e o acolhimento de um projeto portátil — uma peça itinerante, um contador de histórias, uma oficina ou uma leitura encenada.

Ana Sofia Freitas é um dos 19 professores selecionados pela autarquia para darem aulas no âmbito do Mais Dois. Nas últimas semanas estiveram em formação com artistas como os encenadores e coreógrafos Leonor Barata e Vítor Hugo Pontes e participar em oficinas de voz, movimento e ter contacto com a história da dramaturgia. Além dos docentes contratados para as AEC, também os professores-titulares de cada uma das 81 turmas foi convidado para a formação. Quase todos responderam à chamada. Enchem a sala de reuniões da Plataforma das Artes e da Criatividade, para ouvir responsáveis de outros projetos de ensino artístico que foram acontecendo nos últimos anos em escolas nacionais.

A formação é também uma oportunidade para estimular o contacto entre os professores das turmas do 1.º ciclo e os das AEC. O Mais Dois está a tentar facilitar esta relação, permitindo o cruzamento de matérias e de abordagens metodológicas. “Nem sempre temos muito tempo para o fazer”, confessa Sónia Faria, professora titular da turma da EB1 Alto da Bandeira. “Mas com esforço e boa vontade, acabamos por conseguir coordenar algumas coisas”.

A professora titular da turma de Ana Sofia começa a perceber as primeiras consequências positivas. Os alunos mais reservados estão a ficar desinibidos. E as suas aulas rendem depois das atividades com a professora do Mais Dois: “Este jogo do faz de conta que eles fazem aqui transforma-lhes a energia em calma e estão prontos para trabalhar”.

No início da sessão, a professora das AEC convida os alunos a tirarem os sapatos, para se sentirem mais confortáveis. As crianças aproveitam o pouco atrito provocado pelas meias para deslizarem no chão da sala polivalente. É um lugar amplo, junto do refeitório da escola, onde as crianças têm espaço à sua vontade. Mas nem sempre está disponível. Nos dias de chuva, o espaço é ocupado pelas aulas de Educação Física, que ficam sem hipóteses de usar o recreio da escola. Os alunos do projecto Mais Dois têm, por isso, que permanecer dentro da sua sala de aula e o trabalho da professora fica condicionado.

“É uma escola antiga, com chão em soalho. Se o ponho a fazer movimentos as professoras das salas de baixo ou do lado não conseguem trabalhar”, explica Ana Sofia Freitas. Este é apenas um dos choques que o projeto de Guimarães tem com as limitações das escolas públicas, sejam com as condições físicas como a da EB1 Alto da Bandeira ou com as regras com que a tutela desenhou o modelo das AEC.

Os horários disponíveis para estes professores têm dimensão reduzida — a maior carga lectiva é de 12 horas semanais —, o que implica vencimentos relativamente baixos. Esse facto afastou alguns interessados, entre os quais candidatos com formação superior em Teatro e Dança. Apenas Ana Sofia Freitas, formada em Dança, e outro colega têm formação específica. Os restantes professores das AEC têm o curso de Educação Básica.

Outro problema colocar-se-á dentro de cerca de um ano: as colocações nas AEC são anuais. Nada garante, por isso, que estes professores, com a experiência que vão adquirir ao longo de um ano de trabalho e com a formação que estão agora a receber no âmbito deste programa, fiquem novamente nas escolas de Guimarães. A autarquia está ainda a estudar uma solução, que poderá passar por incluir esta experiência como fator de valorização do concurso público. Apesar de todos os constrangimentos, o Mais Dois é um compromisso para manter, “a menos que o Ministério da Educação mude as regras das AEC”, garante a vereadora Adelina Paula Pinto: “Enquanto a responsabilidade for da autarquia, vamos continuar com o projeto”.

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