segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Maria João (Vão). Esta vida dava um livro. E deu

Pilar é uma miúda normal com Trissomia 21. A mãe de Pilar é uma mãe anormal que tem sete filhos e move mundos para conseguir mostrar que estes miúdos são capazes se lhes derem uma hipótese. Conseguiu adaptar um livro de amor para a filha ler e montar uma exposição à séria que mostra arte para lá dos riscos.

Maria João, Vão para os amigos, trabalhava na Thompson. Quando foi à entrevista de emprego e lhe fizeram a pergunta da praxe sobre onde se imaginava daí a dez anos não respondeu, como seria de esperar, uma grande publicitária. Em vez disso, disse que se via como mãe. Pouco tempo depois os colegas faziam uma festa de despedida e entregavam-lhe um cartaz com ela montada na moto – o seu meio de transporte –, com mochila e bebé às costas e já com um enorme barrigão. Estava grávida pela segunda vez e, agora, talvez estivesse mesmo na hora de mudar de vida.

Vão tem oito filhos, a começar por Pilar, com 20, e a acabar no João, com apenas quatro. Um, o Lourenço, já está no céu e vela por todos desde os três anos de idade. Era o terceiro e a maioria dos manos nem chegou a conhecê-lo, mas Vão acredita que tem mais este anjo-da-guarda com todas as forças. Tantas que todos lhe rezam uma oração sempre que há um pedido especial. E, já se sabe, há sempre muitos pedidos especiais, sobretudo na casa de uma família numerosa. Mais recentemente foi a vez de Pilar: “Oh, Ron, dá-me um namorado!”. Pilar, a primeira filha, nasceu com Trissomia 21, uma malformação genética que afeta cerca de 15 mil pessoas em Portugal.

“Digo sempre que abri com chave de ouro. E tive sorte desde o primeiro segundo, houve muita coisa boa logo ali, de chofre”, conta Vão. “Uns amigos têm uma filha com paralisia cerebral profunda e antes de sermos pais tínhamos um exemplo de que é possível viver com naturalidade. Não tem de ser de uma forma estúpida e anormal, embora ninguém esteja à espera, e nem queira, que ela faça determinadas coisas”.

A gravidez correu normalmente. “Foi o Luís [marido] que me disse, não foram os médicos, e é logo uma forma mais suave de receber a notícia. Mal estava a acabar de me contar, já a minha mãe entrava pelo quarto a gritar “parabéns filha, foste abençoada”, e eu só pensava, “ops”. Mas mãe é mãe, se ela diz, nós confiamos. E foi tudo acontecendo fácil”.

O parto foi no Hospital São Francisco Xavier, no Restelo, em Lisboa, “mas passámos muitas horas de angústia em Santa Maria, as nossas e as dos que estavam ao nosso lado. Foram dias pesados”, relembra. “A Pilar ficou com mil tubos e 1500 maleitas, todos os dias lhe tiravam um tubinho até nos virmos embora. Mas deixou lá tudo e nunca mais teve nada”.

E, a lei das probabilidades tem destas coisas, o diretor americano de Vão na agência Thompson era padrinho de batismo de uma miúda com Síndrome de Down e, por isso, sabia melhor do que ninguém os timings, as angústias e as necessidades por que Vão iria passar. “Deram-me uma licença sem vencimento enorme, foram extraordinários”.

Hoje, Pilar é uma mulher. Uma menina/mulher, “de uma sensibilidade enorme, a primeira a topar que estou triste, apanha tudo no ar e, como se não fosse nada, passa por mim e faz-me uma festa ou dá-me um beijinho, sem dar nas vistas, mas muito certeira”, conta a mãe. 

Vão está envolvida em muita coisa, além da família. Desde que Pilar nasceu ficou ligada à APPT21 – Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21, que faz parte do centro Diferenças, fundado pelo médico Miguel Palha (pai de Teresinha, que também tem Síndrome de Down), e que este ano faz 25 anos, celebrados com pompa e circunstância, sob sua responsabilidade.

Logo que nasceu, Pilar foi vista por Miguel Palha. “Mandou-me fazer 30 mil coisas e eu tinha acabado de ser mãe, achei que o homem estava louco, no mínimo. Voltei-me para ele e disse-lhe: desculpe lá, mas agora vou para casa processar isto tudo que me disse e depois logo vejo. Ele não ficou feliz e respondeu-me que não tinha tempo a perder e que eu queria ou não queria”, recorda. Na altura Luís ainda disse a Vão que ela ou tinha ganho um amigo para a vida ou nunca mais o iria ver. Venceu a parte do amigo.

No dia em que Lourenço morreu, num acidente na piscina, Vão tinha uma consulta com a Pilar em Lisboa e telefonou a desmarcar. Pouco tempo depois chegava ao monte, no Alentejo, uma carrinha com terapeutras do Diferenças. “Lembro-me de ele contar [emociona-se] que tinha achado curioso ver-me nessa noite ajoelhada com os meus filhos a rezar, antes de os deitar, como fazíamos sempre, e ouvir-me dizer: “Ron, uma vez que já estás aí em cima, toma conta de nós”. Aquelas coisas que nos saem... Acho que a fé tem sido sempre o que me tem ajudado a ultrapassar isto. Mas dá dores de barriga e tem dias, tem dias… Sabe, às vezes estou no monte e ando à procura de alguém, dou comigo na piscina e penso, que estúpida Maria João, não te chega um?”.

Um livro muito especial 

“A Pilar trouxe muitas coisas boas para as nossas vidas”, diz Vão enternecida. Como qualquer miúda, gosta de acompanhar e imitar as raparigas da sua idade. “Outro dia saquei-lhe da carteira o “Amor de Perdição”. Ela é muito empenhada e esforçada, mas não consegue ler aquilo e comecei a pensar o que poderia fazer para ela ler um livro até ao fim. Pensei que o ideal seria se alguém escrevesse um livro adaptado e se o pudesse lançar agora, nos 25 anos da APPT21. Mas além de precisar que me escrevessem o livro numa semana, precisava de quem o editasse”, recorda Vão. “Tudo isto tem sido uma sucessão de coincidências: uma amiga lembrou-se da Maria Calderón Pimentel, que está na faixa etária da Pilar e escreveu recentemente um livro, e outra falou-me na Chiado Editora. A Maria foi amorosa e disse apenas que o tempo era pouco, só se fosse para adaptar o livro dela... Ora adaptar sempre foi o meu objetivo, pois isso tinha a tal verdade que para mim é significativa. A Chiado Editora também aceitou logo o desafio e em duas semanas o livro estava pronto para fecharmos a exposição “Pintar Para Lá Dos Riscos”, na Galeria de São Mamede, no Chiado, em Lisboa”. Mas esta é outra aventura, já lá vamos.

A adaptação de “Ainda Bem Que Não Levei o Guarda-chuva” para miúdos com Trissomia 21 ou com outras dificuldades de aprendizagem está a ser um êxito. O corpo da letra é maior, as frases são mais curtas e menos adjetivadas e é tudo mais palpável e menos abstrato. Maria teve, por acaso, uma conversa com Pilar que lhe pediu para fazer um livro com muito romance, o que ela respeitou rigorosamente.

Logo que recebeu o primeiro capítulo, Pilar ficou tão derretida que só dizia: “Ó mãe, quando é que a Maria manda mais?”. Pouco tempo depois de ter recebido o livro completo, na praia, “achei a maior graça, porque estava ela com o seu dedinho, finalmente, a ler. Eu dizia sempre que o meu sonho é que a minha filha fosse trabalhar para o bronze a ler um livro, que não fingisse que estava a ler só para copiar as amigas: o protetor solar, o bronze e um livro, que é o que elas fazem”, ri-se a mãe. “Claro, já perguntou quando vem próximo. Ainda não sei, mas vou ter de saber”.

O livro foi o corolário da exposição, o tal evento pedido por Miguel Palha para celebrar os 25 anos da APPT21. “Pediu-me para fazer um leilão de pintura, mas achei uma coisa fria, que não tem a ver comigo, e fiz uma contra-proposta. A Pilar gosta imenso de pintar e pensei que era giro pôr estes miúdos a pintar e mostrar as suas artes e os seus dotes. Além disso, para fazer a exposição, achei que pedir aos pintores uma obra era pouco – a minha mãe ensinou-me que quando pedimos, pedimos a sério [risos] – como dizia a Madre Teresa de Calcutá, só depois de doer é que estamos a dar”, conta Vão.

Dentro deste espírito, nada melhor do que, além de pedir a cada pintor uma obra, e “como retorno dessa gratidão”, pedir-lhes que recebessem os miúdos e pintassem com eles um quadro. O resultado foi um pleno. “A experiência foi fantástica para todos, mas para quem foi mais extraordinária foi para as mães. Porque as mães estavam receosas, os filhos não gostam das texturas, têm uma motricidade fina péssima, não gostam, à partida, deste género de atividades. Mas quando perceberam que estavam a criar uma coisa bela mudaram de atitude e vibraram. E com eles, vibraram as mães”.

Participaram crianças de norte a sul do país, perto de 30, bem como 30 artistas, quase todos pintores. “Não quis ficar por Lisboa, havia uma criança de Coimbra, outra do Algarve. Era uma criança por artista, para criar uma relação de um para um, porque me pareceu importante haver a tal relação, que eles se passassem a achar a maior graça uns aos outros. E acho que isso aconteceu”.

Ao longo da exposição foram acontecendo diversos eventos, como um café dos artistas, em que estes se dispunham a conversar com os visitantes, um concerto, uma sessão de esclarecimento com terapeutas do centro Diferenças, entre outros. “Nesse dia falei bastante com um miúdo que me fez perguntas curiosíssimas, porque tinha uma tia de 60 anos com Trissomia 21. Queria saber se eu achava que a Pilar ia ser como a tia, mas já tinha percebido que a minha filha fazia coisas que a tia não fazia. Expliquei-lhe que a minha preocupação em realizar dinheiro com este projeto tem a ver com a importância da intervenção precoce. Uma miúda com Síndrome de Down com 20 anos hoje não é o mesmo que há 20 anos. Reconheço que atacar desde o início é das coisas mais importantes e faz uma diferença brutal, independentemente de todas as diferenças de cada um, da família em que estão integrados. Tem um peso muito significativo no desenvolvimento”, explica Vão. Tudo o que se fizer mais cedo vai ajudar mais tarde, significa poder esperar mais e “dar a estas pessoas uma vida mais útil em todos os sentidos”.

Esta é uma lição importante. “Não queremos que as pessoas com Trissomia 21 sejam um grupo à parte, conscientes de que são diferentes. Uma das perguntas que o miúdo me fez foi: a Pilar sabe que é deficiente, disse-lhe que ela é deficiente? Sim, sabe, eu digo-lhe. Ele estava horrorizado. Mas, para mim, isso é muito importante e disse-lhe porquê, até porque em alguns momentos isso a consola, quando percebe que é diferente, que lhe são vedadas oportunidades que aos outros estão abertas. Ainda assim, em 2015, há muita coisa que não é fácil porque as pessoas não acreditam que eles são capazes. E há muita coisa de que eles são capazes. E seriam ainda mais capazes se lhes fosse dada a oportunidade de tentarem sem condescendência”. 

Um exemplo? A Pilar adora fotografia e pergunta: “Ó mãe, eu não podia ser fotógrafa de casamentos?” Vão garante que “ela tem um jeitão para fotografia, mas não é a fotografia banal, fotografa fantasticamente e nunca teve ninguém a explicar-lhe o que quer que fosse dois segundos, porque ninguém tem pachorra e não há workshops onde uma pessoa com Trissomia 21 possa, de forma séria, participar. E é este tipo de coisas que temos de ir mudando para as pessoas perceberem que é possível. Tem de se gerir a diferença com verdade. Eu gostava que este projeto ajudasse a isso, fosse uma oportunidade real. Não é irem para o jornal distribuir correio. Quer dizer, também pode ser que seja, mas não tem de ser isso”.

Fonte: Jornal I

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