quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A prova de avaliação de professores acabou (?)

A exigência de uma iniciativa legislativa da Assembleia da República para regular esta matéria, contida no Acórdão n.º 501/2015, proferido no passado dia 13 de outubro, significa que a eventual instituição de uma prova deste tipo terá sempre que ser decidida no quadro parlamentar, através de uma lei ou com recurso a uma autorização legislativa ao Governo.

Esta questão “competencial” que esteve na base da decisão do TC afasta-se parcialmente dos fundamentos invocados na decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Coimbra, que se tinha pronunciado pela anulação do Despacho n.º 14293-A/2013 do Ministério da Educação e Ciência que estabeleceu o calendário, condições de aprovação e valores a pagar pelos candidatos a professores na escola pública, com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ao contrário do TAF de Coimbra, e da posição do Sindicato dos Professores da Zona Centro, amplamente apoiada num parecer técnico do Conselho Científico do Instituto de Avaliação Educativa, I.P., os juízes do Palácio Ratton não corroboraram a tese de que a PAAC é “uma forma arbitrária de procurar limitar o acesso à carreira docente que nada tem a ver com as competências para se ser docente”.

Seguindo a lógica da jurisprudência assente neste acórdão, nada impedirá a Assembleia da República, se o quiser, de estabelecer uma prova deste tipo ou de permitir que um Governo o faça.

A história da PAAC
O princípio de submeter os candidatos à docência no ensino não superior público que ainda não integram a carreira docente a uma prova de avaliação foi consagrado no Estatuto da Carreira Docente (ECD) pelo Decreto-Lei n.º 15/2007 (posteriormente modificado pelos Decretos-Leis n.º 270/2009, 75/2010 e 146/2013) e vigorou durante três governos.

Assim, o artigo 2.º do ECD, estabelece que “considera-se pessoal docente aquele que é portador de habilitação profissional para o desempenho de funções de educação ou de ensino, com carácter permanente, sequencial e sistemático, ou a título temporário, após aprovação em prova de avaliação de conhecimentos e de competências”, e o artigo n.º 22.º, n.º 1, alínea f) do mesmo diploma legal estabelece que “são requisitos gerais de admissão a concurso [para professor] obter aprovação em prova de avaliação de competências e conhecimentos”. 

Subsequentemente, o Decreto Regulamentar n.º 3/2008 aprovou o regime da PAAC vindo, também ele, a ser alvo de sucessivas modificações (através do Decreto Regulamentar n.º 27/2009, do Decreto-Lei n.º 75/2010 e pelo Decreto-Regulamentar n.º 7/2013).

Todos estes atos legislativos, e os sucessivos despachos que regularam os aspetos práticos de realização da PAAC (que só “saiu do papel” em 2013) pressupunham que os governos podiam legislar nesta matéria ao abrigo da competência legislativa complementar prevista no artigo 198.º, n.º 1, alínea c) da Constituição. Este preceito constitucional atribui competência legislativa ao Governo para “fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam”. 

Baseando-se no artigo 34.º, n.º 2, da Lei de Bases do Sistema Educativo que permite que o Governo defina “os perfis de competência e de formação de educadores e de professores para o ingresso na carreira docente” e no artigo 62.º, n.º 1, alíneas b) e c) do mesmo diploma que estabelecem que o Governo deverá publicar, sob a forma de decreto-lei, a legislação complementar relativa “à formação do pessoal docente” e às “carreiras do pessoal docente”, os governos liderados por José Sócrates e Pedro Passos Coelho assumiram sempre que dispunham de poder legislativo próprio para instituir e regular a PAAC.

Ora, é este entendimento que o Tribunal Constitucional não aceita. Para o TC, o âmbito daquelas normas da Lei de Bases do Sistema Educativo não sustenta esse pressuposto, não servindo como normas habilitadoras e consequentemente decidiu pelo fim da PAAC.

No raciocínio do Tribunal, os atos legislativos dos governos nesta matéria “não correspondem a qualquer desenvolvimento de algo que exista na Lei de Bases” por duas razões. 

A primeira porque a prova em questão, de acordo com a fundamentação preambular e material contida nas diferentes versões do ECD, “visa elevar o patamar de exigência em termos de capacidades e conhecimentos relativamente àqueles que pretendam lecionar” no sistema público de ensino, estando em causa “a avaliação de competências e conhecimentos, para efeitos de determinar se umas e outras são suficientes para assegurar a qualidade de ensino a um certo nível; e não a formação” prevista nos artigos da Lei de Bases. 

A segunda porque o poder legislativo conferido ao Governo para regular as carreiras de pessoal docente respeita não apenas ao ensino, mas também ao acesso à função pública e, como “a exigência de aprovação na prova de avaliação consubstancia uma restrição do direito de acesso à função pública que é um direito liberdade e garantia” tutelado constitucionalmente, é indispensável uma autorização legislativa da Assembleia da República emanada nos termos dos artigos 165.º e 198.º da Constituição. Na falta dessa autorização, o TC conclui pela inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 2.º e no artigo 22.º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Carreira Docente e, consequencialmente, do Decreto Regulamentar n.º 3/2008, na versão dada pelo Decreto Regulamentar n.º 7/2013.

O direito a “ser professor”
Um dos aspetos mais relevantes na fundamentação do Acórdão n.º 501/2015 é que ele estabelece alguns critérios de ponderação – na ótica constitucional - sobre a validade jurídica da exigência de uma prova de avaliação como requisito para o exercício da profissão de professor no ensino público, critérios estes que não poderão deixar de ser levados em conta se, eventualmente, vier a ser decidido reintroduzir este tipo de prova.

Sem ir ao detalhe (para os interessados, o Acórdão está disponível no sítio da Internet do TC) vale a pena referir três notas.

Firmando o entendimento de que “uma coisa é ‘poder ser professor’, outra, conexa, mas diversa, é «ter direito a ser professor»”, o TC rejeita a tese de que a instituição desta espécie de requisito viola o princípio da proteção da confiança sendo bastante claro na afirmação de que “a formação inicial dos professores apenas pode ser perspetivada como uma das condições necessárias” para o ingresso na carreira docente e indo ao ponto de considerar que “o legislador foi consistente na exigência de aprovação numa prova de avaliação, considerada de interesse público”. A prevalecer esta perspetiva, será difícil, se a questão se colocar, invocar no plano jurídico o argumento de que a formação conferida pelas instituições de ensino superior que formam professores é suficiente para validar a aptidão para a docência dos futuros professores.

Mas não só; os juízes do Tribunal Constitucional recusam também a tese de que a obrigação de aprovação neste tipo de prova para ingresso na função pública seja excessiva (no sentido de inadequada, desnecessária ou desproporcionada). Para o TC, “existem razões de interesse público que suportam a exigência da prova de avaliação, as quais, por visarem o reforço da qualidade do ensino ministrado no âmbito do sistema de ensino público, não podem ser tidas como estranhas aos valores constitucionais”, nomeadamente aos preceitos da própria Constituição que regulam a educação cultura e ciência (artigo 73.º), o ensino (artigo 74.º) e o ensino público (artigo 75.º, n.º 1).

Por fim, o TC deixa bem claros dois pontos. O primeiro é que a exigência de aprovação na prova aos candidatos a professor não contende com a igualdade no acesso à função pública, porque é um requisito dirigido “a todos os interessados”. O segundo é a afirmação da legitimidade de criar um crivo mais rigoroso para os candidatos a professor na escola pública por contraposição à inexistência desse requisito para o exercício da profissão no ensino privado e cooperativo. Uma vez mais, o TC opta por considerar que razões de prossecução do interesse público justificam que o estabelecimento de vínculos de emprego público se faça com recurso a “requisitos de mérito, aptidão e capacidade dos interessados, procurando que sejam escolhidos os melhores para as funções a desempenhar”; ou seja, sustenta a ideia de que é legalmente admissível que o ingresso na carreira docente na escola pública seja mais exigente do que no setor privado.

Tiago Saleiro

Fonte: Educare

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