segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Atletismo adaptado. Nesta escola, a meta é só o início

Jorge Pina cegou há dez anos e desde então que faz das corridas a sua vida. Abriu a Escola de Atletismo Adaptado, a primeira do país em que crianças com limitações podem praticar todas as modalidades do atletismo.

Esta é só a segunda vez que sobe para a cadeira de atletismo e, por isso, o entrar ainda é atabalhoado. “Estás confortável?” Rafa nem precisa de responder. De capacete já posto, põe-se em posição de arranque. “Calma, não dês tudo de uma vez”, avisa Jorge Pina, numa luta para ajustar a cadeira, quando a vontade de Rafa era já ter dado duas voltas à pista do INATEL. “Tens de me ajudar aqui que eu não tenho olhos”, lembra Jorge, entre risos, e aperta com força o cinto que dá uma melhor postura ao atleta. Os gestos são tão decididos que, de facto, de vez em quando, é bom lembrar que há dez anos que Jorge deixou de ver com os olhos, passando essa função para os outros sentidos que, num conjunto aparentemente confuso, o ajudam a treinar as mais de 60 crianças que atualmente fazem parte da primeira Escola de Atletismo Adaptado do país.

Correr, saltar, lançar, saltar barreiras, treinar velocidade. Aqui nenhuma variante do atletismo fica de fora. A única diferença entre os treinos que ocupam o lado direito da pista e todos os outros que ajudam a encher o parque 1.º de Maio ao fim da tarde é que, para se juntar a esta equipa, tem de ter um handicap. “As pessoas preferem estas palavras, não é?”, pergunta Jorge, não escondendo a ironia de quem tem estatuto para tratar as limitações por tu. Pugilista profissional, há dez anos, quando cegou, trocou as luvas pelas corridas adaptadas, o que já lhe valeu a participação em dois Jogos Paraolímpicos: Pequim e Londres. “Mas estou a ficar velho, sabe? Senti necessidade de trazer gente nova para o desporto”, conta (...). Da vontade à prática tiveram de ser percorridos muitos quilómetros, literalmente. Para angariar dinheiro para criar uma escola que se quer gratuita, Jorge associou-se a uma campanha feita em ginásios de todo o país, na qual cada quilómetro percorrido nas passadeiras era convertido numa moeda de um euro. No total, foram percorridos mais de 135 500 quilómetros, “o equivalente a mais de três voltas ao mundo”, lembra o treinador, com um entusiasmo difícil de esconder.

Sou diferente? Ainda não deu a volta ao mundo, mas à pista já foram umas tantas. Jonas entrou para a escola em novembro e, segundo a mãe, Anabela, faltar não chega sequer a ser uma opção. “Já o vi correr com frio, a chover a potes, e nem assim ele desiste.” Jonas tem a doença da moda, microcefalia, mas Anabela garante que nada teve a ver com mosquitos, até porque até hoje não há uma explicação para o que aconteceu durante a gestação. “Na prática, o cérebro não dá ordens ao corpo”, explica, “e por isso deram ao meu filho apenas dois anos de vida.” Hoje, com 12, mostra que na vida as únicas barreiras são aquelas que o treinador lhe está a pôr para saltar e que o fazem abandonar a conversa em direção à pista, para algo que o estimula verdadeiramente. “O desporto faz com que o cérebro aprenda que consegue fazer alguma coisa, que consegue dar ordens ao corpo.”

Depois de ter passado pelo futebol, a natação e as artes marciais, parece que o atletismo vai funcionar para Jonas como destino final. Com uma energia que parece não se esgotar nem depois de quase uma hora de aula, não dá tempo sequer para uma pausa entre exercícios. Ainda José Santos está a retirar os pinos que pôs no chão para que fossem contornados, já Jonas pergunta: “E a seguir?” A seguir é igual, mas mais rápido. “Vocês não adormecem a correr?”, ironiza José. “Mais rápido, vá.” Jonas vai e vem, vai e vem, e só depois de cinco voltas começa a abrandar o ritmo. Finalmente sentado no relvado, diz em tom de conclusão: “Acho que estou a ficar rápido demais.”

De facto, de acordo com as contas de Anabela, foram raras as vezes que Jonas ficou para trás. Como se tivesse as memórias organizadas em forma de agenda, começa a debitar uma série de feitos: “Sorriu com cinco semanas, sentou-se aos seis meses, pôs-se de pé com dez meses, andou com 15 meses.” Com os problemas fundamentais a centrarem-se mais no intelecto, atualmente anda num quarto ano “muito adaptado” e já chegou a casa com perguntas difíceis. “O que diz uma mãe a um filho que lhe pergunta se é diferente dos outros meninos?”, pergunta, no único momento em que as lágrimas são mais fortes do que o esforço para parecer forte. “Respondi-lhe que é diferente, sim, mas não é por isso que é inferior.”

Um ano de escola 

Pela escola já passaram mais de mil miúdos, mas atualmente são 60 aqueles que treinam quase diariamente. Alguns atletas já venceram provas nacionais e tiveram até medalhas de ouro nos Jogos Paraolímpicos Europeus da Juventude. “Temos campeões de tudo e mais alguma coisa. Pena que só haja um desporto em Portugal, o futebol”, lamenta José Santos, que com mais quatro treinadores completa a equipa técnica da escola. Orgulha-se de ter sido um dos impulsionadores do desporto para cegos, ainda em 1988, quando pensar em atletismo para quem não via era quase utópico. “Depois de anos em maratonas, comecei a conhecer demasiado bem as corridas e precisava de algo que me estimulasse”, conta (...). Desde 2008 que trabalha com jovens com limitações e faz questão de reforçar a palavra “trabalho” quando fala do seu dia a dia: “Imagine o que é juntar a dificuldade do desporto a uma limitação física ou mental.”

As palavras de quem tem de contornar as dificuldades dos atletas trazem de volta a microcefalia de Jonas e a espinha bífida de Rafa, muitas vezes esquecidas para quem vê a velocidade de um e a destreza do outro. Rafa aproxima-se, a mostrar timidamente as novas habilidades. É a sua segunda aula, mas já consegue girar sobre si próprio sem sequer pousar a roda da frente. “Parece que nasceu mesmo para isto”, exclama Jorge Pina, com um entusiasmo que já ninguém estranha e cujos movimentos fazem parecer que está constantemente preparado para entrar em campo. Próximo destino é o Rio de Janeiro, para os Olímpicos deste ano. “E acabar aí?” Jorge ri-se. “Na verdade, quero ir é a Tóquio em 2020. Vamos ver se tenho pernas para lá chegar”.

Fonte: Jornal I

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