sexta-feira, 27 de maio de 2016

Uma plataforma para facilitar a transição de jovens de instituições para a vida adulta

O coordenador, João Pedro Gaspar, e uma voluntária, Vânia Ribeiro, desenham o cartão-de-visita da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos. Do outro lado da sala, um rapaz faz exercícios de código da estrada. Está a esgotar-se o tempo na instituição que o acolhe desde miúdo. Está a um mês de completar 21 anos. E a carta de condução poderá ajudá-lo a conseguir trabalho.

“Dormia até ao meio-dia, não era?”, provoca João Pedro Gaspar. Esta semana, passou duas manhãs inteiras ali, sentado à frente de um computador. Na próxima, há de passar três, a ver se ganha ritmo. Ajudaram-no a fazer o currículo e a imprimir alguns exemplares para que fosse entregar. Falaram aqui e ali e deram com uma loja de produtos de animais que precisa de alguém para fazer entregas.

Portugal é um dos países europeus com maior número de menores a viver em instituições. A Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens de 2015 ainda não foi divulgada. Em 2014, estavam 8470 em centros de acolhimento e em lares de infância e juventude. Tinham sido retirados aos pais, sobretudo, por falta de supervisão e de acompanhamento familiar.

João Pedro Gaspar trabalha há 16 anos com crianças e jovens acolhidos. Dá apoio pedagógico, assume papel de tutor, supervisiona equipas técnicas. Instigado pela prática, tornou-se investigador do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra e pôs-se a estudar as transições para a vida adulta.

As crianças e jovens, diz, “têm necessidade de carinho, de compreensão, de vínculo”. Tendem a sentir a medida de acolhimento como um castigo. Muitos não chegam a perceber porque tiveram de sair de casa. Embora menos do que há uns anos, o sistema de promoção e proteção continua a separar irmãos, que poderiam funcionar como amparo ou, pelo menos, partilha de fardo.

Na tese de doutoramento Os desafios da autonomização, que defendeu em 2014 na Universidade de Coimbra, João Pedro Gaspar apontou “impreparação e falta de dedicação em grande parte dos cuidadores”. No seu entender, importa quem cuida ser capaz de se pôr no lugar de quem é cuidado, compreender que a raiva exteriorizada atinge quem está mais próximo, mas “é contra a família, a sociedade, o mundo”. “Os cuidadores devem ter a capacidade de absorver a revolta, proporcionando relações afetuosas, securizantes”, defendeu. E a estabilidade destas relações também pode funcionar como um fator de proteção lá fora.

Há anos que, a título informal, João Pedro Gaspar e a irmã, Fernanda Gaspar, acompanham ex-acolhidos. Desde o início do ano, numa sala do edifício 2 da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, funciona a Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos. No início, reunia meia dúzia de profissionais de várias áreas dispostos a dar algum do seu tempo. Neste momento, 30. E esses estão a tentar angariar outros, para que cada jovem possa ter dois adultos que sirvam de referências, que funcionem como mentores. Ainda há pouco, aventuraram-se no “Queimódromo”, com uma moldura gigante e t-shirts “Eu sou piajé”.

Coimbra não tem casas de transição

No país, não chegam para as encomendas os apartamentos destinados a apoiar a transição destes jovens para a vida adulta. Em Coimbra, não existem sequer. Feitos 21 anos, os jovens têm de sair. “Uns regressam ao que resta da família, o que muitas vezes significa voltar ao fogo de onde foram retirados”, nota João Pedro Gaspar. Outros preferem ficar sozinhos, como este rapaz.

H. nasceu com síndrome fetal alcoólico. Não se lembra do dia em que foi retirado à família – tinha apenas dois anos e meio. A mãe nunca se livrou da dependência. É com ela que agora está a irmã, que cresceu na mesma instituição, e um sobrinho, que já estava está em risco de ter igual percurso.

A plataforma segue 26 jovens. Uns só precisam de um ouvido, outros de quase tudo. “Há tempos, ainda no inverno, um jovem ligou-me porque não tinha como tomar banho de água quente”, exemplifica o investigador. “Estava a partilhar apartamento com outros jovens, mas não contribuía para a garrafa de gás e os outros decidiram que não podia tomar banho de água quente.”

O mais novo é o que está ali a fazer exercícios de código da estrada. A mais velha tem 35 anos e está prestes a aparecer com umas dúvidas sobre a herança do avô, que morreu há pouco. João Pedro Gaspar e Fernanda Gaspar, psicóloga e investigadora, prestam-lhe algum apoio, a título informal, desde 2000.

“Nunca cortamos laços”, dirá a rapariga, quando chegar. Perdeu a mãe aos 12 anos. A avó ficou com ela e com os irmãos, mas adoeceu. Aos 17 anos, Ana foi posta num lar. “Foi complicado. Sentia que me tinham cortado as pernas. Já era uma pessoa adulta. Fiquei às ordens de outros.” Tirou um curso de auxiliar de cozinha. Quando saiu, já trabalhava. “Quando é preciso, o professor liga ou eu ligo.”

Vai funcionando como ponte entre jovens que já saíram ou estão a sair e a plataforma. Ajudou um irmão a reger-se. O rapaz tem um défice cognitivo. Exagerou no consumo de álcool. Chegou a estar sem abrigo. Ana acolheu-o. João Pedro Gaspar ajudou-o a arranjar um emprego. “Não me lembrei de lhe dizer que tinha de entregar IRS”, conta o investigador. Recebeu uma multa.

Serviu de emenda. Entre os voluntários, está agora a contabilista Teresa Chaves. “Para já, o que fiz foi orientar jovens, ajudá-los a preencher o IRS, ver até que ponto têm necessidade de o entregar. Mesmo não sendo obrigatório – este ano o limite são 8 500 euros –, algumas entidades pedem a declaração”, comenta ela.

O rapaz que ali está sentado, em silêncio, a fazer exercícios de código da estrada, quis fazer IRS. E Teresa Chaves foi com ele às Finanças pedir a senha para aceder ao portal e ajudou-o a preencher os formulários, embora a tal não fosse obrigado. Só trabalha aos fins-de-semana. “É levantar tabuleiros e assim. As outras pessoas vão almoçar e deixam os tabuleiros na mesa e eu vou lá e levanto”, diz. Quando trabalhar a tempo inteiro, precisará de fazer declaração de rendimentos e já terá alguma prática.

Ajudaram jovem que tinha ordem de prisão

A plataforma tem três eixos e “apagar fogos” é o primeiro, começa por esclarecer João Pedro Gaspar. O caso mais grave, até agora, envolveu um rapaz que estava sem medicamentos de foro psiquiátrico, o que lhe provocava grande perturbação, sem sítio para morar, sem alimentação assegurada, sem documentos, com ordem de prisão por não ter pago a multa a que fora condenado por agredir o pai. Está medicado, documentado, tem sítio para viver, já não tem multa para pagar, está livre da prisão, trabalha como ajudante de cozinha num restaurante, ganha o suficiente para pagar as suas contas. Tudo se resolveu depressa, diz João Pedro Gaspar, “porque ele tinha muita vontade”. E alguém ouviu, orientou, pagou despesas básicas. 

Os membros da plataforma querem evitar situações como a que se acaba de descrever. Por isso mesmo, o segundo eixo é a prevenção. “Queremos chegar às instituições, aos cuidadores diretos, a quem contacta todos os dias com jovens, passar a mensagem de que têm uma missão importante na vida daqueles cidadãos, que não basta garantir comida a horas, roupita, essas coisas, que têm de os preparar para a vida cá fora”, explica. “Isto implica entrar nas instituições. Já temos alguns contactos, mas não será fácil porque as instituições são muito fechadas.”

Alguns problemas são demasiado evidentes. Formam padrões. A campainha toca para o pequeno-almoço, o almoço e o jantar. Não fazem a cama, não põem a mesa, não a levantam, não lavam a louça, não fritam um ovo, não cozem uma chávena de arroz, não vão às compras ao supermercado. “É tudo impessoal”, resume Fernanda Gaspar. “Estão habituados a ser servidos, não estão habituados a desempenhar tarefas.” Alguns dos que ela orienta ligam-lhe. “Ai, como é que eu faço um frango? Ai, como é que eu faço uma sopa?”. Faz um programa de competências pessoais ajustado a cada um. Leva-os, por exemplo, ao supermercado e entrega-lhes uma lista de compras e um certo montante. “Fico na caixa à espera. Dizem-me: o dinheiro não dá. Digo: Tem de dar.” Somam lacunas, mas também forças. Tudo isto pode ser trabalhado antes da saída.

O terceiro eixo é o da investigação. Para lá dos 30 voluntários, há duas estudantes a fazer uma cadeira, duas mestres a tentar fazer o estágio da Ordem dos Psicólogos e quatro investigadores integrados. “São benefícios colaterais”, diz João Pedro Gaspar. “Com o trabalho que vamos fazendo, vamos obtendo uma base de dados que permitirá aferir o que deve ser melhorado, até a nível legislativo.”

Parece-lhe claro que há muita coisa para melhorar em matéria de transição para a vida adulta. Neste momento, sublinha, “a pensão de alimentos de filhos estudantes prolonga-se até aos 24 anos”. “Houve um entendimento de que os jovens precisam dos pais até aos 24 anos. Os jovens que estão nas instituições têm de sair até aos 21 anos. Poderão dizer que isto é só adiar o problema. Aos 24 há outra maturidade.”

“Se há tema que tenho estimulado bastante é o das transições de vida”, diz Eduardo Santos, responsável pela unidade de investigação do Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento Vocacional e Social da Universidade de Coimbra. Está tudo no princípio. Espera, dentro de poucos anos, estar capaz de dizer por que alguns fazem a transição com mais facilidade.

Fonte: Público

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