quinta-feira, 2 de junho de 2016

É preciso saber mais sobre a educação em casa, diz o Eurydice

O pedagogo Ivan Illich, defensor da “autoaprendizagem”, acreditava que “o direito de aprender é limitado pela obrigação de frequentar a escola”. É com esta ideia que o Eurydice publica um breve relatório sobre as crianças e jovens que “vão à escola” sem sair de casa.

Um adulto europeu provavelmente passou muito tempo na escola. Mas uma criança que tenha entre 1 e 3 anos passará ainda mais. Segundo a Comissão Europeia, quase todas as crianças de 4 anos frequentam educação pré-escolar e cuidados para a infância. Em percentagens muito próximas dos 95% definidos nas metas europeias de 2020. 

Do início da escola para o seu fim, muitos países europeus têm vindo a aumentar o número de anos de escolaridade obrigatória desde os anos 1980. “No entanto, enquanto as reformas educacionais na Europa empurram para a escolaridade mais cedo e por mais tempo, algumas pessoas fazem uma escolha deliberada para educar os seus filhos em casa”, alerta o Eurydice. 

No passado, algumas personalidades famosas como Virginia Woolf, Agatha Christie, Thomas Edison e Pierre Curie viram os seus pais fazer essa mesma escolha. As suas vidas, trabalho e realizações mundiais confirmam que “aprender em casa pode ser tão benéfico quanto a aprendizagem na escola”. 

Atualmente, pesquisas realizadas sobretudo nos EUA mostram também que as crianças de hoje que são educadas em casa têm desempenhos tão bons, senão melhores, que as que frequentam a escola. 

Embora em muitos países falte uma recolha de dados consistentes, há evidências de que o fenómeno da educação em casa ou ensino doméstico está a aumentar. Nos EUA, estima-se que cerca de 1,8 milhões de crianças - 3% da população em idade escolar - foram educadas em casa em 2012, em comparação com pouco mais de 1 milhão em 2003. No Reino Unido, houve um aumento de 65% - mais de 10 mil novas crianças em ensino doméstico, nos últimos 6 anos. 

Em Portugal, dados do Ministério da Educação apontavam em 2013 para a existência de 338 crianças e jovens a frequentar a modalidade de ensino doméstico e individual, sobretudo no 1.º e 2.º ciclos. Quatro anos antes eram apenas 82. 

O que dizem os pais?
Mas, para além destes números, o que sabemos sobre a educação em casa? O Eurydice responde no relatório “Educar em casa: o que podemos aprender”, da autoria de Elena Cordero e Peter Birch, publicado em 29 de abril deste ano. 

No documento, os investigadores reúnem os principais argumentos que levam os pais a fazer esta escolha. Alguns escolhem educar em casa, porque acreditam que as escolas minam a criatividade e liberdade dos seus filhos. Enquanto outros dizem que as escolas não são suficientemente rigorosas, especialmente no que concerne à educação religiosa. 
A preocupação com o bullying é outro dos motivos para defender o ensino doméstico. Tal como considerar que as escolas inibem a aprendizagem verdadeira, espontânea e profunda. No caso das comunidades itinerantes, frequentar a escola pode simplesmente ser algo que não combina com o seu estilo de vida. 

“Muitos defensores iniciais da educação em casa estavam preocupados com a tendência secular da educação pública, enquanto ativistas posteriores, como John Holt e ainda mais radical Ivan Ilich, viam a educação em casa como a única solução viável para uma experiência mais natural, independente e gratificante com a aprendizagem”, lembram Cordero e Birch.

O que diz a lei?
Tanto as políticas como a legislação que regula o ensino doméstico - designado muitas vezes pela nomenclatura inglesa “home schooling” - variam muito nos Estados-membros da União Europeia. 

Em alguns países, como em Portugal ou no Reino Unido, os pais têm um direito inequívoco a optar por ensinar os seus filhos em casa. Noutros, como na Alemanha, esta modalidade de educação é ilegal. Do mesmo dão conta os autores do relatório num relato sobre um caso resolvido pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos: “Konrad e outros contra a Alemanha”. 

“A legislação nesta área revela uma tensão entre as liberdades pessoais e o bem comum”, relatam os investigadores. O processo diz respeito à alegação de um grupo de cristãos ao direito de manter os seus filhos fora das escolas privadas ou estatais por razões religiosas. 

No entanto, a resposta do Tribunal Europeu de Direitos Humanos aprovou a visão de que os pais não têm o direito exclusivo de educar. Mais: que a exposição a contradições e a pontos de vista plurais é do interesse das crianças. E, portanto, que o Estado tem neste ponto o interesse primordial para evitar o “surgimento de sociedades paralelas com base em convicções filosóficas separadas”.

Aqueles que argumentam contra a educação em casa também põem em causa a qualidade e o tipo de educação, defendendo que esta se torna altamente dependente dos pontos de vista e competências dos pais. Lembram ainda que os meios socioeconómicos da família têm uma grande influência e que a carga de educar os filhos cai muito provavelmente sobre as mulheres, criando uma armadilha ao nível da desigualdade de género.

O que podemos concluir?
“A resposta curta é que precisamos de saber muito mais”, defendem Cordero e Birch. Já que, sustentam, “o debate sobre ensino em casa é muitas vezes ideológico, mas muito pouco se sabe sobre o seu impacto”.

Os autores reconhecem que “há uma surpreendente falta de dados sobre a percentagem, não negligenciável, de crianças que são educadas em casa”. O que impede uma maior compreensão sobre como funciona essa educação, se oferece benefícios ou representa uma ameaça para a sociedade.

O ensino doméstico, concluem os investigadores do Eurydice, “poderia ser um modelo a considerar para uma série de situações práticas que as escolas não são capazes de resolver”. Exemplos não faltam. No caso de a criança ou o jovem não poder frequentar assiduamente a escola por causa de problemas de saúde, distância ou mobilidade relacionada com o trabalho dos pais. 

Além disso, prosseguem: “Olhando para o impacto potencial da tendência para a urbanização das nossas sociedades, com mais de 80% da população a viver em cidades, pode haver aumento da pressão financeira sobre o modelo de escola, sobretudo em zonas rurais remotas. Indiscutivelmente uma melhor compreensão da educação em casa pode ajudar no desenvolvimento de uma boa alternativa sistémica.”

No final do relatório, Cordero e Birch reconhecem que os ataques terroristas a que a Europa tem assistido ultimamente “levaram a tensão entre liberdade individual e responsabilidades sociais para posições extremas”. 

Neste cenário, “alguns decisores políticos podem sentir que a limitação do ensino doméstico poderá ajudar a criar sociedades mais coesas”, especulam os autores, advertindo que “numa era de políticas baseadas em evidências” será necessária uma abordagem alternativa. Que permita “saber mais sobre a experiência de ensino em casa e questionar as nossas próprias suposições sobre os nossos sistemas de ensino”.

Fonte: Educare

Sem comentários: