sábado, 23 de julho de 2016

A igualdade de oportunidades e a Lei de Bases do Sistema Educativo

A aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) em 1986, teve por base um importante compromisso que abriu caminho para a expansão do acesso à educação e para a consolidação da arquitetura do sistema educativo. Ao longo das décadas, a LBSE tem constituído um travão (ainda que insuficiente) ao deambular das políticas e aos caprichos de alguns decisores. É tempo de comemorar os trinta anos daquele importante momento na história da educação em Portugal e de abrir espaço para uma reflexão que possa conduzir a novos entendimentos. 

A preocupação com a igualdade de oportunidades

O acesso, o sucesso e a educação de segunda oportunidade são linhas de força da LBSE, que proclama o direito “a uma justa e efectiva igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolares” (artº 1 nº 2) e a “uma escolaridade de segunda oportunidade”(artº 3 alínea i). A generalização da escolaridade obrigatória ao ensino básico de nove anos foi acompanhada de um ideal porventura menos consensual e que veio a revelar-se mais difícil de atingir na sociedade portuguesa: o assumir de um tronco verdadeiramente comum, uma formação geral comum a todos os portugueses (lembre-se a “experiência“ recente que visava ressuscitar o ensino dual). 
Trata-se de uma orientação que importa salvaguardar em eventuais revisões da LBSE, dotando o sistema de condições que lhe garantam consistência. 
A LBSE foi um importante impulso em matéria de acesso à educação desde o pré-escolar, aos ensinos básico, secundário e superior.
Nos anos que se seguiram à aprovação da LBSE houve progressos assinaláveis em matéria de acesso a todos os níveis de ensino. Se considerarmos por exemplo a educação pré-escolar e o ensino pós- primário verifica-se que no início da década de 1980 tardavam em progredir. Segundo a Pordata, a taxa real de escolarização no pré-escolar era ainda de 14,2% em 1980, tendo passado para 71,6% em 2000. No mesmo período, a taxa de escolarização no 3º ciclo do ensino básico passou de 25,8%, para 83,9%. Durante este tempo foi necessário um grande investimento em infraestruturas e na formação de professores. Investimento que terá de se intensificar em matéria de acesso designadamente nos ensinos secundário e superior e na educação de adultos. Para além da LBSE, a integração europeia constituiu um fator de pressão para a escolarização dos portugueses. 
O direito ao sucesso escolar ficou muito aquém dos ideais traçados em 1986. Há que repensar a escola, a sua organização, os programas, a pedagogia. 
A generalização do acesso bem como a crescente diversidade cultural e étnica da população escolar trouxe grande complexidade pedagógica à escola portuguesa bem como acentuada dificuldade em combater o insucesso escolar e assumir uma maior responsabilidade pelas aprendizagens. A acumulação pelos alunos de dificuldades contribui para perpetuar as desigualdades. A correção desta situação passará pela reorganização do trabalho nas escolas, dos modos como esta se relaciona com o mundo, com o conhecimento, com a cultura e com a ciência. É necessário repensar os currículos e os programas de modo a que, como indica a LBSE, seja possível assegurar “o equilíbrio entre o saber e o saber fazer, a teoria e a prática, a cultura escolar e a cultura do quotidiano”(ensino básico, artº 7 alínea b). A LBSE aponta outros caminhos pouco concretizados, por exemplo, no que diz respeito à educação para a cidadania, ao desenvolvimento da autonomia dos alunos, da capacidade de trabalho e do gosto pela atualização de conhecimentos. 
A estrutura do ensino básico organizada em três ciclos obriga os alunos a difíceis transições. Esta situação foi justificada pela gestão de uma herança do Ensino Preparatório e pela qualificação dos professores. Mas é absurdo hoje, perante uma escolaridade obrigatória de 12 anos haver professores confinados ao longo de toda a sua vida profissional a dois anos dessa escolaridade! É importante criar condições de reconversão científica e pedagógica de modo a que os professores possam acompanhar os seus alunos ao longo de vários anos. 
Os trinta anos de vigência da Lei de Bases demonstraram que a sequencialidade progressiva que ela defendia e em que muitos acreditavam se tornou impraticável face ao peso da lógica disciplinar e à organização existente. De facto, salvo raras exceções, na prática não existe uma organização do ensino que tenha em conta a diversidade das aprendizagens realizadas nos ciclos precedentes, os progressos alcançados e as dificuldades não ultrapassadas; pelo contrário, o ensino tem sido perspetivado em função das etapas mais avançadas da escolaridade. A experiencia de acompanhamento de projetos de promoção do sucesso escolar levou-me a constatar como é difícil, com a estrutura atual, criar transições graduais e apoios eficazes aos alunos. Como seria diferente se a escola pudesse privilegiar a continuidade das equipas pedagógicas e a estabilidade dos docentes na escola. Como seria diferente com um currículo a funcionar, por exemplo por áreas e projetos transdisciplinares, com programas mais reduzidos e consequentes com a evolução e generalização do acesso ao conhecimento. Apesar das dificuldades há agrupamentos que conseguiram diminuir as ruturas existentes entre ciclos, graças a grandes esforços. Nada justifica porém perpetuar hoje uma organização que penaliza os alunos mais pobres comprometendo a igualdade de oportunidades e adiando o objetivo da construção de um verdadeiro tronco comum. 
A escolaridade obrigatória de doze anos é também um fator que obriga a repensar a sua estrutura e sequência.

O Direito à educação de segunda oportunidade

O Direito à educação de segunda oportunidade foi consagrado na LBSE, onde se previa que se destinasse designadamente aos excluídos ou aos que pretenderiam completar a formação profissional, cultural ou tecnológica. Dada a estrutura de qualificação da população portuguesa, esta seria porventura a área de maior urgência em matéria de educação, tanto mais que poderia funcionar como promotora de sucesso das gerações mais jovens e de igualdade de oportunidades. A educação de adultos, que deve ir para além da educação de segunda oportunidade e abarcar conceitos como a educação ao longo da vida e a educação permanente, tem sido uma área mal compreendida e objeto de instabilidade política verificada por exemplo no programa “Novas Oportunidades” que o Governo anterior decapitou.

A igualdade de oportunidades e o ensino superior

O sistema binário consagrado na LBSE é um fator de desigualdade no acesso ao ensino superior.
A criação e desenvolvimento do ensino politécnico tem constituído um importante meio de expansão do acesso ao ensino superior, de apoio ao desenvolvimento regional e dinamização local.
No entanto, a rigidez de interpretação do sistema binário deu origem à existência de desigualdades, contrariando o que a LBSE estipulava para o ensino superior: democraticidade, equidade e igualdade de oportunidades (artº 12 nº 2,alínea a). Em grande parte dos cursos, sobretudo naqueles que são comuns aos dois subsistemas, a opção dos alunos é significativamente condicionada pela sua origem sociocultural. 
A arquitetura do sistema binário baseou-se no equívoco de que seria possível a criação de dois mundos perfeitamente diferenciados. Com o passar do tempo as fronteiras foram-se diluindo, tendo a universidade e politécnico assumido de modo concorrencial grande parte das formações originalmente definidas como pertencendo à especificidade do ensino politécnico. As restrições inerentes a uma equívoca “pureza “ do sistema foram sendo aplicadas sobretudo ao ensino politécnico. Esta situação verifica-se para diversas formações, designadamente no que diz respeito à outorga de doutoramentos pelo ensino politécnico, mesmo quando estes têm a capacidade de provar disporem das condições definidas oficialmente para o fazer. Os politécnicos têm vindo a ser afetados no que poderia ser o desenvolvimento da especificidade da sua investigação, uma vez que os doutoramentos dos seus docentes são realizados na universidade. Por outro lado, se levada à letra, seria absurda a exclusão das universidades da investigação que deveria ser desenvolvida no politécnico “aplicada e de desenvolvimento, dirigida à compreensão e resolução de problemas concretos” (artº 11, nº 4). Onde caberia a investigação no domínio da medicina por exemplo? 
As atualizações da LBSE neste domínio (2005 e 2013) aprofundaram a cultura de “pecado original” e são reveladoras de preconceitos e incapacidade de reconhecer a evolução do ensino superior no seu conjunto.
É importante que as alterações à LBSE tenham em conta o conhecimento da realidade e constituam passos para a democratização da educação e para o desenvolvimento do país. 
Agora que a vida política nos demonstrou ser possível haver entendimentos políticos impensáveis há uns tempos, vamos acreditar que também na educação é possível encontrar plataformas que garantam estabilidade e uma progressão segura. 
A existência de novos compromissos pode ser decisiva como já o foi em 1986.

Ana Maria Bettencourt

Presidente do Conselho Geral do Instituto Politécnico de Lisboa

Fonte: Publicado no JL de 20 julho 2016 via FB

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