sábado, 2 de julho de 2016

Preguicite



Dos estados inflamatórios, de origem desconhecida, que mais assolam as crianças em idade escolar, a preguicite aguda será dos piores. Destaca-se sobre os episódios “virusais” de gripe porque, ao contrário deles, não surge acompanhado nem por febre alta nem por dores generalizadas no corpo, chegando a assumir-se (dependendo das disciplinas, dos projetos educativos e de um ou outro professor) como uma verdadeira epidemia atípica, muito frequente entre os 6 e os 18 anos, temendo-se que a estirpe do micróbio que parece gerá-la seja, inclusive, multirresistente.

Apesar de se expressar subitamente de forma exuberante, a preguicite aguda parece ir-se instalando de modo insidioso, havendo muitos casos descritos em que, após o seu começo, se prolonga por anos a fio, sendo observada a sua remissão, regra geral, na idade adulta. Quando tal não acontece, a forma crónica de preguicite, muito pouco explorada na literatura, caracteriza-se pelos mesmos sintomas do quadro agudo que, entretanto, se vão tornando tão instalados que se assumem como uma dor que, por mais que seja mal tolerada e que interfira na qualidade de vida de quem a sofre, irá perdendo relevância à medida que uma criança e a sua família se rendem a ela.

Seja como for, a versão aguda da preguicite parece fazer-se acompanhar de sintomas difusos, de entre os quais se destacam: um estado de prostração súbito e generalizado que parece incapacitar uma criança para qualquer atividade física ou mental; uma reação muito próxima da náusea sempre que se trata de esboçar qualquer esforço (nomeadamente, intelectual); uma leve enxaqueca acompanhada de um entorpecimento ao nível dos mais diversos desempenhos; e um estado de alheamento súbito, muito semelhante aos comportamentos de retirada, através do qual uma criança manifesta ausências que, não sendo de natureza epilética, parecem descentrá-la de quaisquer tarefas escolares que tenha, entretanto, em mãos.

Ao contrário de outros estados de diagnóstico muito difícil - como os défices de atenção e os transtornos de hiperatividade - que suscitam terapêuticas generalizadas, a preguicite aguda parece não ser acessível a sedativos ou a ansiolíticos e, mesmo a algumas substâncias da família das anfetaminas (como o metilfenidato), usadas de uma forma generalizada, mesmo diante de quadros clínicos muito mal especificados. Para um estado inflamatório desta natureza, não existindo outro tipo de abordagens que o reabilitem, as limitações com que ele se faz acompanhar acabam por se fazer sentir muito ao nível da vida de todos os dias destas crianças e das suas famílias.

Aliás, estão descritos distúrbios familiares intensos que acompanham a preguicite aguda. Quer ao nível da relação dos pais destas crianças com elas mesmas, quer deles próprios, entre si (que parecem fazer-se acompanhar de grande agitação psicomotora, alguma irascibilidade e comportamentos verborreicos de grande impulsividade) que fazem com que este quadro inflamatório interfira na qualidade de vida de toda a família, de forma franca e aberta.

Já a forma de transmissão da preguicite aguda parece afastar qualquer tendência para um contágio direto, uma vez que, numa fratria de diversos irmãos, a preguicite parece assolar, unicamente, um deles, enquanto os restantes permanecem libertos de quaisquer sintomas que a acompanhem, por mais que sejam, porventura, portadores. Por outro lado, uma alimentação rica em vegetais e fibras, ao mesmo tempo que se vão diminuindo os açúcares, as gorduras, os hidratos de carbono e as carnes vermelhas parece não interferir ao nível da preguicite aguda, por mais que as mães reclamem que sim.

Admite-se, por mais que ainda se esteja longe da fase dos ensaios clínicos, que a preguicite aguda se comporta como uma espécie de negativo do bicho-carpinteiro. O que, na verdade, não deixa de ser enigmático, porque tudo aponta para demasiados micro-organismos (a par, por exemplo, do bichinho da leitura) o que nos remete para uma relação com a aprendizagem que, felizmente, iliba de responsabilidade na preguicite aguda tanto os pais como os professores. Por mais que nos faça sentir a todos nós, educadores, "entregues aos bichos". Ou será a preguicite aguda a consequência de uma geringonça disfuncional (ao contrário de algumas que, segundo se diz, funcionam), e coloca as crianças, de forma súbita e assustadora, entregues a um estado inflamatório grave? Não sei. Mas, seja como for, não se morre de preguicite aguda. Mas lá que incomoda, incomoda!

Eduardo Sá

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