domingo, 18 de setembro de 2016

Ainda não perdoámos os erros da psiquiatria

Em 1840, eram os Estados Unidos uma jovem nação, as autoridades andavam obcecadas com a enumeração estatística dos seus cidadãos. Nesse ano, pela primeira vez, quiseram saber quantos doentes mentais tinham no país. Arrumaram-nos sob a etiqueta de “insanos e idiotas”. O rótulo único era o reflexo do pouco que se sabia sobre os que se designavam como loucos.

Interessante é perceber que o recenseamento norte-americano desse ano encontrou, por exemplo, taxas bastante mais altas de “população insana e idiota” entre os negros nos Estados do Norte do que no Sul, o que levou defensores da escravatura a argumentar que “[a escravatura] tinha benefícios para a saúde mental”, escreve Jeffrey A. Lieberman no livro que foi lançado recentemente em Portugal, Psiquiatras. Uma história por contar (editado pela Temas e Debates/Círculo dos Leitores).

O recenseamento dos “insanos e idiotas” é apontado na obra como a origem primordial daquela que viria a ser a futura “Bíblia da Psiquiatria”, o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (o chamado DSM), volume onde a Associação Psiquiátrica Americana fornece uma listagem do que, à época, se entende por transtornos mentais.

Os “insanos e idiotas” do recenseamento de 1840 abarcavam a complexidade de condições tão diversas como o que hoje se designa como esquizofrenia, perturbação bipolar, depressão e demência, mas também o síndrome de Down ou o autismo. O último DMS, de 2013, a quinta edição, lista mais de 300 perturbações mentais. Foi um longo caminho.

A história da Psiquiatria, dos seus primórdios e aproveitamentos, está pejada de “extravagantes erros”, “tratamentos excêntricos e ridículas teorias”, “biltres e charlatães”. Na sua obra, o psiquiatra norte-americano, que lidera o Centro de Medicina da Universidade de Columbia do Hospital Presbiteriano de Nova Iorque e é ex-presidente da Associação Americana de Psiquiatria, quis escancarar a história negra desta especialidade médica tão diferente das outras.

“Extravagantes erros”: Na área do tratamento da doença mental houve a chamada “cura pela febre”, que significava infetar doentes mentais com malária, acreditando-se que a febre os curaria. A teoria granjeou o primeiro Prémio Nobel da Medicina no campo da Psiquiatria ao austríaco Wagner-Jauregg, em 1927. Outro tratamento que se tornou popular nas décadas de 1940 e 1950 foi o coma induzido por administração de doses excessivas de insulina, que supostamente surtia o alívio de sintomas psicóticos.

Depois, em Lisboa, foi a vez de, na década de 1930, o futuro Nobel português, Egas Moniz, ter inaugurado a prática das leucotomias, criando lesões permanentes no cérebro de pacientes com perturbações mentais graves, com a crença de que melhorariam a sua condição. A prática, com alterações, massificou-se nos Estados Unidos com a designação de lobotomia, explica o livro. E acabou completamente desacreditada.

Muito do arsenal terapêutico à disposição destes psiquiatras tinha como possível efeito secundário a morte. Mas, ainda assim, os arriscados tratamentos eram a única esperança à época, discorre Lieberman.

"Filha bastarda da Medicina"

O presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, João Marques Teixeira, discorda do uso da palavra “erro”. “De acordo com o conhecimento da altura, eram avanços”. Lembrando que há na lista dos “erros” tratamentos que foram “diabolizados”, como os então chamados eletroques, e depois reabilitados.

Hoje, lembra o psiquiatra português, a chamada eletroconvulsoterapia tem uma tabela de indicações clínicas precisas, é usada sob anestesia e pode ser muito útil, por exemplo, no tratamento da depressão e em alguns casos de esquizofrenia.

O certo é que, à parte destes pretensos “avanços” científicos com vista à cura, na altura, a alternativa era fechar o doente numa instituição. Aí podiam ser acorrentados, chicoteados, submergidos em água gelada ou encerrados em celas. Aos domingos, muitas vezes eram trazidos cá fora para serem exibidos como excêntricas atrações, descreve o autor.

Todas as especialidades médicas tiveram o seu quinhão de teorias e tratamentos inúteis, diz o autor (...) em entrevista telefónica. Basta lembrar o uso de purgas sanguíneas, nomeadamente com a aplicação com sanguessugas, como prática para curar as mais diversas maleitas, que durou até ao século XIX. Mesmo hoje, a Food and Drug Administration lista 187 remédios ineficazes para o cancro, já retirados do mercado.

Mas se as outras especialidades médicas fizeram o seu caminho de erros, nelas houve evolução contínua, defende. A Psiquiatria, que o professor chama de “indesejada filha bastarda da Medicina” ou “ovelha ronhosa da família médica”, teve tudo menos um percurso linear.

Teve avanços para logo a seguir ter longos recuos. E, admite, “durante o primeiro século e meio de existência da Psiquiatria, o único verdadeiro tratamento para a doença grave era o internamento.”

Em 1917 um psiquiatra dizia, desalentado, “raramente conseguimos alterar o rumo da doença mental. Temos de admitir abertamente que a vasta maioria dos pacientes colocados nas nossas instituições fica perdida para sempre.”

A remissão espontânea surgia como única esperança para os doentes mentais desde o século XIX até à década de 1950 [década em que surgem os primeiros psicofármacos]. Mas, na maior parte dos casos, “era tão provável como tropeçar num trevo de quatro folhas.”

O próprio Lieberman, que nasceu em 1949, diz que o atraso científico nesta área não remonta às trevas do século XIX. O médico admite que, quando começou na profissão, nos não muito longínquos anos 1970, “a maioria das instituições psiquiátricas estava ensombrada pela ciência dúbia, atolada numa paisagem pseudomédica, em que os devotos de Sigmund Freud ocupavam todas as posições de poder.”

O pai da psicanálise é descrito como um empecilho ao progresso da Psiquiatria. “Acabou por conduzir a Psiquiatria a um deserto intelectual durante mais de meio século”, assumindo “os contornos de uma religião”. Freud e os seus seguidores tinham doenças como a esquizofrenia e a perturbação bipolar como curáveis apenas através “do tipo certo de terapia verbal”, escreve.

Mas porque é que “a Psiquiatria anunciou mais tratamentos ilegítimos do que qualquer outra área da medicina”? Em grande parte porque os seus praticantes não concordavam em relação ao mais essencial: o que era a perturbação mental e como a tratar, responde.

E também porque a Psiquiatria lida com o invisível, sublinha. Se nas outras áreas da Medicina há causas para as doenças, há lesões, análises a pedir, exames a prescrever, em Psiquiatria “não se consegue mostrar”. Não é possível, como para um diabético, pedir um teste de glicose, ou, como para um doente cardíaco, prescrever um ecocardiograma. “Não há testes, não há exames para procurar a causa da ansiedade”, nota Lieberman.

No século XIX o método era observar o comportamento anormal, esperar que a pessoa morresse, e depois escrutinar os seus cérebros em refinadas dissecações. Umas doenças tinham base biológica reconhecível, outras não. E assim se separaram águas. Aos primeiros chamaram-se neurologistas, aos que ficaram “com as perturbações da mente invisíveis” chamaram-se psiquiatras.

A Psiquiatria nasce assim como uma especialidade médica que tinha a seu cargo um conjunto de doenças sem causa física identificável, razão pela qual “a doença mental é mais difícil de compreender. Está envolta em mistério”.

Marques Teixeira concorda que esta é a razão por que “a Psiquiatria continua a ser uma especialidade médica um pouco ao lado”. O presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental nota “a essência da medicina é um conceito de lesão” e em Psiquiatria ainda não conseguimos encontrar marcadores biológicos ou funcionais visíveis. O que os psiquiatras tratam são sintomas.”

Mesmo na atualidade, “as únicas explicações biológicas indiscutíveis acerca das origens de uma doença mental são relativas à paralisia geral do insano (causada pela bactéria da sífilis), à pelagra (uma forma de demência causada pela deficiência de vitamina B12) e, mais recentemente, à doença de Alzheimer e outras formas de demência e de psicoses provocadas pelo consumo de drogas”, explica Lieberman. Acrescenta que existe “uma compreensão razoável” sobre como a adição e a perturbação pós-stress traumático se desenvolvem no cérebro.

Mas continuam a não existir explicações “convincentes” acerca das origens precisas de algumas das perturbações mentais mais prevalentes, caso da esquizofrenia, da depressão, ou das perturbações da ansiedade ou bipolar.

Limpar a imagem

O psiquiatra Pedro Afonso, que leu o livro e conhece o autor, diz que a obra funciona como “mea culpa”, para tentar “limpar a imagem da Psiquiatria, mostrando-a como mais rigorosa, mais ética, mais científica. É um esforço de elevá-la à categoria que ela merece.”

Pedro Afonso, professor auxiliar de Psiquiatria na Faculdade de Medicina de Lisboa, admite que este sempre foi um campo “mais penetrável pelas ideologias, mais passível de ser politizado, e com um impacto brutal na sociedade”. Basta lembrar a colaboração de psiquiatras com o regime nazi.

O que Lieberman tenta fazer, segundo Pedro Afonso, é “um reencontro com a história”, que lembra, por exemplo, a patologização da homossexualidade e os muitos erros praticados e depois replicados à escala mundial, incluindo em Portugal. O médico lembra um outro livro publicado em Portugal (Climepsi) com contornos semelhantes, Uma história da Psiquiatria. Da era do manicómio à idade do Prozac.

Jeffrey A. Lieberman diz que teve um objetivo pedagógico final. O ex-presidente da Associação Americana de Psiquiatria quer dizer ao público em geral, numa linguagem acessível, que o que lá vai, lá vai. E que o presente traz bons augúrios.

Pedro Afonso lembra que na Psiquiatria atual “há uma aproximação às neurociências, há tratamentos que têm demonstrado segurança, sob o escrutínio da ciência”. Lieberman traça também as aproximações recentes da Psiquiatria à genética, à tecnologia das imagens cerebrais.

Ainda assim, o autor do livro defende que os psiquiatras, e a área médica que escolheram praticar, ainda são olhados com desconfiança e com a crença de que podem fazer pouco para resolver o problema.

O estigma, defende, radica precisamente na crença arraigada de que a Psiquiatria continua tão ineficaz como foi ao longo de grande parte da sua história. Agora encontra-se, em termos históricos, “na sua adolescência”.

Jeffrey A. Lieberman diz (...) que “os erros passados da Psiquiatria ainda não foram perdoados”. Ao contrário do resto da medicina, em que se olha para “tratamentos antigos, que hoje nos parecem tolos, como parte de um processo de aprendizagem”, o médico considera que “os espectros do passado da Psiquiatria não se desvaneceram e que a profissão não se libertou da suspeição e da troça.”

“O público não teve a perceção dos avanços da Psiquiatria da mesma forma rápida pela qual se tornou consciente dos avanços em relação ao tratamento da doença coronária, do cancro e da Sida.”

Será que o seu livro surtiu efeitos? A obra foi lançada nos Estados Unidos no ano passado, a receção foi boa, diz. Mas Lieberman continua a receber “e-mails de ódio” que repetem as mesmas acusações anti-Psiquiatria de sempre: “os vossos diagnósticos fictícios só existem para enriquecer a indústria farmacêutica”, “vocês pegam em comportamentos perfeitamente normais e chamam-lhe doenças para justificar a vossa existência” e “vocês são uns charlatães que não sabem o que andam a fazer”. Lieberman diz que já está habituado.

Decidiu escrevê-lo também porque há 20% da população mundial que sofre de perturbações mentais e “a maioria não é tratada”. Por falta de acesso aos tratamentos mas também muito “por vergonha, preconceito”.

Querem um exemplo? A Sra Kim. Tinha 66 anos, era licenciada em Medicina e mulher de um abastado industrial asiático. Não lhe faltava dinheiro nem cultura. Tinha entrado no sistema de saúde por uma infeção na pele, mas tinha sido encaminhada para si. Berrava, fazia gestos bizarros e irados, falava sozinha. Lieberman chamou depois o seu marido e os dois filhos adultos ao consultório.

A custo, acabaram por confessar que sabiam que Kim padecia de uma doença mental grave, mas que nunca procuraram tratamento, por vergonha. Há largos anos que a mantinham numa ala isolada da sua espaçosa casa, escondendo-a sempre que tinham convidados. Aquele episódio na Nova Iorque do século XXI lembrou-lhe o romance do século XIX de Charlotte Brontë, Jane Eyre, em que Mr. Rochester escondia a sua mulher louca no sótão.

No mundo ocidental, Lieberman responde (...) que no resto do mundo o cenário é muito mais tenebroso, “o maior impedimento no acesso ao tratamento não é qualquer falha do conhecimento científico ou limites da capacidade médica, mas o estigma social”, a par da desconfiança em relação à eficácia dos tratamentos.

Mas, defende em tom confiante, “a maioria das doenças mentais pode ser diagnosticada e tratada eficazmente.”

O psiquiatra José Luís Pio Abreu, autor de Como Tornar-se Doente Mental, não é tão otimista. “A Psiquiatria está em crise, é mundial. Ainda ninguém sabe o que é a mente”. O psiquiatra defende “que se escreve mais do que se lê. Existem instrumentos, o problema é saber se são bem usados. Há muitas ofertas de psicologia e psicoterapia, o problema é a orientação no meio desta selva.”

Claro que Lieberman encara como natural que, daqui a alguns anos, algum psiquiatra do futuro venha dizer que muitas das verdades psiquiátricas hoje comummente aceites no seu livro, no capítulo A Psiquiatria Renascida, não passam, afinal, de erros. “Qual é a alternativa?”

Fonte: Público

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