sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Serviço Nacional de Educação

Há obviamente uma razão de fundo para que o Serviço Nacional de Saúde seja justamente incensado como um epítome do Portugal democrático e o Serviço Nacional de Educação seja apenas oportunidade para amores políticos de verão. É que a Saúde lida com o que é imediatamente vital, enquanto a Educação trata de um sistema de produção e auxílio de vida diferido no tempo. A Saúde faz a diferença entre estarmos vivos ou mortos, fisicamente ativos ou diminuídos, enquanto a Educação não tem aquele poder digital de tudo ou nada, de verdadeiro (estar vivo) ou falso (estar morto). Ora, se toda a gente compreende e está de acordo que estar vivo é decisivo, nem todo a gente está de acordo que ser mal-educado ou inculto é um mal a evitar. Desde logo, bem entendido, porque ser mal-educado não é uma questão de tudo ou nada e porque os degraus da incultura são infinitos. Sendo diferida nos seus efeitos, a questão da educação pode ser, assim, apenas ocasião de interesses retóricos, sem um choque imediato com a realidade. O que tiver que acontecer acontecerá, mas não imediatamente e não claramente. Os políticos sabem bem disso.

No entanto, a boa educação e a cultura são, em certo sentido, mais decisivas e infraestruturais que a saúde. São a boa educação e a cultura que permitem, por exemplo, encontrar e esgrimir razões em defesa do direito universal e gratuito à saúde e, de modo ainda mais amplo, do valor decisivo da democracia para a dignidade humana. A ideia de direito à saúde é algo que emerge de um certo tipo de cultura, conhecimento e experiência democráticos que só se alcança a partir de certas condições educacionais.

Naquele sentido, pois, a educação tem, em Portugal, um elevado défice de incenso, elogio e compromisso públicos. De facto, e aparentemente, toda a gente percebe que um país é o que forem, em grande parte, as mentes e ações das suas pessoas, que derivam em grande parte da educação formal disponível. Bem entendido, não se conhecem, nem conhecerão jamais (pese embora o reacionarismo examinativo), as relações causais exatas entre o ensino formal e o conteúdo mental e comportamental das pessoas (as aprendizagens). A pedagogia não é uma ciência positiva e as relações causais que se estabelecem entre as ações educativas formais e as mentes e os comportamentos subsequentes são altamente indeterminados e instáveis. Também aqui a Educação-Pedagogia sai a perder para a Saúde-Medicina. Enquanto, de modo quase integral, as relações entre as ações médicas e a saúde são de carácter positivo e determinístico (dado o que se alcança cientificamente em cada momento), já as relações entre a ação pedagógica e a aprendizagem são de caráter meramente probabilístico, quando não completamente indeterminadas e especulativas. Como é fácil perceber, o que é de caráter especulativo sofre, no nosso tempo, de desvalor acentuado, excetuando, claro está, o caso da ciência económica, que mesmo quando tudo se dissolve não deixa de manter um assinalável estatuto de infalibilidade.

Não espanta, então, que António Arnaut, “pai” do Serviço Nacional de Saúde e um dos heróis da democracia abrilista, defenda que “os profissionais de saúde não são inferiores aos juízes. Se os juízes tratam da nossa liberdade, dignidade, os médicos tratam da nossa saúde e da nossa vida. Para haver uma certa estabilidade nas carreiras da saúde, não só dos médicos, era executável equipará-los às carreiras dos juízes”. Só podemos concordar. Mas, pelas mesmas razões expendidas acima, tem que se defender o mesmo para os professores, ou ainda mais. Se os médicos tratam da “nossa saúde e da nossa vida”, os professores tratam da nossa mente e, mais importante ainda, da nossa democracia e da nossa ideia de justiça e de país.

Um país pode ter um bom sistema de saúde e ser uma tirania. Já a existência de um Serviço Nacional de Educação é condição necessária para uma democracia. Percebe-se que assim seja. Sendo a Medicina, sobretudo, uma ciência e uma tecnologia, a intencionalidade ideológica e cultural dos seus agentes é, quase, irrelevante para a sua eficácia. O que aí é primariamente importante é a qualidade técnico-científica dos seus agentes. Daí a relevância das carreiras e das condições de trabalho dos médicos. Dado o ritmo do crescimento científico e tecnológico dos campos médicos, os médicos precisam de tempo e recursos para se atualizarem, estudarem e praticarem. Ninguém aceita que um médico de hoje utilize os mesmos conhecimentos e tecnologias de há décadas.

Mas, então, que dizer dos professores e da educação? É certo que as tecnologias pedagógicas não evoluem como as tecnologias médicas. Pese embora os modismos e ativismos (quando não histerismos) pedagógicos dos governos, incluindo, em elevado grau, do atual, a palavra culta e a sabedoria emocional continuam a ser as principais tecnologias educativas. Mas já não se pode dizer o mesmo dos saberes científicos e culturais que os professores agenciam para os seus alunos. Por definição, os professores precisam de atualizar os seus saberes. Para tal, os professores precisam, em especial, de dois recursos e uma condição: tempo, dinheiro e liberdade profissional. O acesso ao conhecimento atualizado, de modo consistente e consolidado, não pode ser uma tarefa de amadores e de tempos livres, de evanescências ocasionais, muito menos pode ser tido como um luxo. Se eu quero ensinar tenho de estar em linha não só com o passado mas também com o conhecimento do tempo presente. A par da liberdade de ensinar, da autonomia profissional, o tempo e o dinheiro são os principais problemas da educação e dos professores, para mais num momento em que praticamente não existe formação profissional dos professores (excetuando a que serve diretamente os interesses do experiencialismo pedagogista do Governo e mais que duvidosamente os interesses científicos e pedagógicos dos professores e das escolas).

Ora, sobre estes assuntos, tempo, dinheiro e liberdade profissional, o atual Governo diz menos que nada ao país, numa crescente delapidação do estatuto social e profissional dos professores. Relativamente a Maria de Lurdes Rodrigues, este Governo e o atual ministro da Educação não mudaram nada. Pelo contrário. A “proletarização” da classe acentua-se: professores com cada vez menos tempo para estudar (com mais turmas, mais horário de trabalho e mais desregulação do trabalho docente), mais remediados (sem aumentos salariais ou carreiras profissionais há quase dez anos!) e com menos liberdade profissional (com a crescente injunção política e governamental de experiências pedagógicas e transformações organizacionais não democráticas, a que se soma a anunciada municipalização da educação, deixando os professores ali à mão do vereador ou do sr. presidente...).

Sejamos claros: na educação, a “geringonça” congelou. Depois de um início auspicioso, o horizonte enegreceu. E não se espere que o Governo o ilumine, subitamente. Já vimos que sem “choque” a coisa não vai lá. O que quer dizer que as coisas só poderão mudar pela mobilização dos professores e dos seus representantes sindicais, explicando ao país que um Serviço Nacional de Educação com profissionais respeitados e preparados é condição necessária para um país decente. Tal como defende António Arnaut para o Serviço Nacional de Saúde.

Francisco Teixeira

Professor do Ensino Secundário; doutorado em Filosofia e especializado em organizações educativas e administração educacional

Fonte: Público por indicação de Livresco

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