domingo, 3 de dezembro de 2017

Quem compra pássaros?

            Todos os sábados, quando ainda mal amanhece, saio de casa em direcção ao mercado semanal. Para além da qualidade dos produtos hortícolas e dos preços apetecíveis, gosto de tomar o pulso ao povo da terra que me acolheu. Depois, pela manhã dentro, as intermináveis conversas com os vendedores locais ajudam-me a compreender melhor os dramas daqueles que ainda têm a coragem necessária para consagrar a vida à agricultura, sobretudo neste país.
            Esta manhã, porém, ao deambular por um dos corredores mais afastados da zona central do comércio local, uma voz inquietante desviou-me a atenção das nabiças:
            “– Quem compra pássaros?”
Não resisti e aproximei-me. À chegada, um cenário dantesco corroeu-me a alma: gaiolas e mais gaiolas com roseicollis, periquitos, papagaios, enquanto, bem à minha frente, uma catatua olhava longamente na minha direcção. Baixei-me e quase consegui tocá-la. Concentrei-me, então, na linha que a prendia ao pedaço de madeira, enquanto a via tentar destruir, bicada após bicada, as algemas que a separavam da felicidade: um fio de nylon com pouco mais de um dedo polegar. Quase petrificado, ali fiquei, de joelhos, enquanto a vendedora, pressentindo mais um potencial cliente, se aproximava com ar sorridente:
            “– É uma catatua domesticada. Pode tocar-lhe que ela não morde! E são apenas 70 euros…” – olhei à volta, sem conseguir esboçar qualquer resposta. Presa à minha indecisão, a pobre mulher lá voltou rapidamente à carga:
            “– Aquelas além também são catatuas, embora selvagens. Apenas 25 euros cada… aqueles roseicollis ou inseparáveis-de-faces-rosadas, como também lhes chamam, faço-lhe um desconto, pois estamos quase no fim da praça…” – agradeci com um leve e forçado sorriso. Tão forçado que quando dei por mim estava novamente só perante a inquietação da catatua.
            A plumagem colorida da exótica ave atraía os olhares dos que por ali passavam, embevecidos por ver um aperaltado pássaro, com crista de galo, empoleirado numa estaca de madeira. Lembrei-me, então, de Da Vinci, que compraria os pássaros nas feiras, apenas para poder voltar a libertá-los… e perante o exemplo do génio humanista senti vergonha de mim.
            Em frente da pobre catatua, o tempo parecia ter parado. De quando em vez, os nossos olhares encontravam-se. Talvez curiosa com a minha presença, interrompia as bicadas no fio, para logo depois voltar a retomar a tarefa. A razão parecia levá-la a compreender a missão de Sísifo que tinha pela frente, mas, ao mesmo tempo, o instinto parecia forçá-la a insistir uma e outra vez. Afinal, o instinto de liberdade é sempre mais forte do que todos os raciocínios urdidos.
            Quando, por volta do meio-dia, me vim embora, carregado de alfaces e cenouras, trazia estampada na alma aquela luta inglória. E é agora, aqui sentado à porta de casa, com vista para o Tejo, que recupero o sentido de mais um dia. Lá ao fundo, os maçaricos, os alfaiates e os flamingos esvoaçam em cima dos lodaçais. E lembro-me das gaiolas e da infeliz catatua, a bicar as algemas da escravatura moderna. As imagens vêm então em catadupa e assomam-me à memória as aves de rapina que um dia vi acorrentadas num desses museus de falcoaria, em que invocando o princípio das relações mutualistas se condena à escravatura um animal para gáudio de meia dúzia de homens. Lembro-me ainda de ter estudado que algures num passado não muito distante existia o hediondo hábito de furar os olhos dos melros para que eles cantassem de um modo mais profundo e dolente. E ao imaginar que esse canto terá animado serões e inspirado até poetas ou músicos, dou por mim a sentir vergonha de ser homem.
            Quando compreenderemos, finalmente, que os animais não se compram e vendem? Quando compreenderemos que os seres humanos não são tão especiais como julgam? Quando se tornará claro que a nossa suposta superioridade em relação a toda e qualquer forma de existência não passa de uma representação errada e profundamente perigosa?
            Talvez que para muitos dos leitores faça ainda sentido a caça, bem como o tenebroso ritual de espetar ferros afiados nos dorsos de touros, perante as gargalhadas da assistência, mas para mim tudo isso já não faz qualquer sentido. Vai mesmo contra tudo o que a passagem dos anos me tem ajudado a compreender.
Sem margem para dúvida, matar por prazer já não deveria fazer parte do mundo ao qual eu gostaria de pertencer, tal como comprar animais para depois aprisionar dentro de jaulas. Se cada cidadão tem hoje nas mãos o imenso poder do consumidor, a verdade é que nem tudo se pode comprar ou vender. A liberdade é, definitivamente, uma delas.
Na obra A genealogia da Moral, editada em 1887, escreveu Nietzsche: “Talvez deva admitir-se que o deleite da crueldade não desapareceu; apenas se subtilizou, se revestiu das cores da imaginação, se espiritualizou e se cobre com nomes hipócritas”. O futuro parece, cada vez mais, continuar a dar-lhe razão…


Renato Nunes 
(renato80rd8918@gmail.com)

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