domingo, 7 de janeiro de 2018

Educação, Política e Economia: Uma Relação Invertida

Há mais de 20 anos, António Guterres declararia a sua “paixão pela Educação”, expressão que entrou no discurso político contemporâneo como uma espécie de lugar-comum a que recorrem em especial aqueles que nela não encontram uma prioridade na governação. Se em meados dos anos 90 isso se enquadrou numa tendência de crescimento do investimento em Educação como proporção do PIB (de acordo com os valores recolhidos pela Pordata esse valor era de 3,1% em 1985, de 4,7% em 1996, chegando a 5,1% em 2002, com o valor per capita do investimento a quase decuplicar dos 70,6 euros por habitante para quase 700), com as políticas educativas a desenvolverem-se como uma área prioritária da governação, colocando-se ao seu serviço os recursos financeiros tidos como indispensáveis, a partir de então se o discurso não ousou uma completa inversão, a acção política em torno da Educação passou a estar subordinada a agendas de outra natureza, estando subalternizada (como a Saúde e outras áreas relacionadas com as funções sociais do Estado) a exigências de tipo financeiro e economicista.
A par do desinvestimento nesta área, em especial na sua dimensão humana, assistiu-se ao progresso da lógica da “racionalização financeira” e à insistência no argumento de que “investir mais na Educação não significa necessariamente melhores resultados”. Um antigo ministro da Educação e presidente do Conselho Nacional da Educação chegou a afirmar, em declarações à Lusa reproduzidas pelo Público em 24 de Setembro de 2016, que “a ideia de que toda a despesa em educação é investimento ‘é uma treta’.[1]
E assim, a Educação foi perdendo espaço nos orçamentos de Estado, verificando-se uma descida das despesas com este sector ao ponto de ficar abaixo dos 4% em 2015 e 2016 (o acréscimo para 4,8% em 2009 e 2010 corresponde ao pico da actividade da Parque Escolar, sendo que parte desses contratos estão agora sob investigação[2]), ainda de acordo com os dados disponíveis na Pordata[3], mesmo se ao nível do discurso político se afirmou uma recuperação da paixão de Guterres (“É hora de voltarmos a dizer, como dissemos há 20 anos, que a educação tem que ser de novo uma paixão deste país e é necessário investir na nossa educação”, declarou António Costa, defendendo que uma das grandes causas da próxima legislatura deve ser o combate ao insucesso e abandono escolar)[4].
Em 2010, num estudo, de que era co-autor Mário Centeno, actual ministro das Finanças, afirmava-se que “a evidência apresentada neste artigo aponta para a importância crucial de estabelecer um ambiente institucional que beneficie o investimento dos indivíduos na educação. Numa perspectiva dinâmica, torna-se necessário promover um conjunto coerente de políticas que preserve os retornos educacionais, alinhando os incentivos dos indivíduos com os da sociedade como um todo.”[5] A abrir o artigo citava-se a frase “Se acham que a Educação é cara, tentem a ignorância”, atribuída a Derek Bok, antigo presidente da Universidade de Harvard.
Seria de pensar que este tipo de confluência de perspectivas (a política de António Costa e a técnica de Mário Centeno) permitissem abrir um novo período na governação em que a Educação deixasse de estar condicionada pelo que se consideram ser os superiores interesses da gestão financeira de um Orçamento que cada vez é mais ditado por condicionalismos que se afastam do interesse da larga maioria dos cidadãos para obedecer a preceitos ideológicos ou tecnocráticos (o que determina o valor de 3% para avaliar da bondade ou maldade de um défice público? Não será essa uma abstracção arbitrária ditada por teorias económicas especializadas em falhar repetidamente as suas previsões?) e se ocupar quase em exclusivo com a satisfação dos interesses de grupos de pressão aos quais não se atribui a classificação de “corporativos” como aos professores quando reclamam que os seus contratos – e não apenas os das parcerias público-privadas ou os estabelecidos com empresas que exploram em regime de oligopólio sectores como a energia – sejam respeitados?
Sim, é verdade que nem todo o investimento em Educação se traduz na melhoria das aprendizagens e desempenho dos alunos e que não há uma relação directa entre mais dinheiro na Educação e melhores resultados em testes PISA, PIRLS ou TIMMS. Sim, também é verdade que o investimento em Educação não significa necessariamente (ou apenas) a melhoria das condições laborais do pessoal docente e não docente. Mas o contrário não é igualmente uma verdade indesmentível ou claramente provada pelos factos. O investimento feito na última década do século XX foi-se fazendo sentir com a melhoria dos resultados dos alunos ao longo da primeira década do século XXI.
Mas o que é mais importante em tudo isto é que a concepção sobre o papel da Política e Economia na definição das prioridades da governação da polis se alterou de uma forma que seria inconcebível para os primeiros teorizadores da coisa pública (Res Publica) como uma forma de governo o mais justa possível e em que as decisões da governação devem subordinar-se aos interesses dos governados, dos mais fracos e vulneráveis, mobilizando os recursos para a sua satisfação e não para a obtenção de privilégios em causa própria ou colocando a gestão financeira como uma valor maior do que a Educação, Saúde ou mesmo Justiça.
Recuperemos Aristóteles que há quase 2500 anos, com todos os condicionalismos sociais da época, afirmava que “quando se trata do governo da cidade, sempre que esse governo esteja fundado na base da igualdade e completa semelhança dos seus cidadãos, estes consideram justo governar por turnos; em tempos idos, como é natural, cada indivíduo considerava justo que os cargos fossem desempenhados em alternância, e pensava que, como retribuição, alguém zelaria pelo seu bem próprio, tal como ele mesmo zelara pelo interesse alheio durante a permanência no cargo. (…) A conclusão que se segue é clara: os regimes que se propõem atingir o interesse comum são rectos, na perspectiva da justiça absoluta; os que apenas atendem aos interesses dos governantes são defeituosos e todos eles desviados dos regimes rectos. São despóticos, mas a cidade é uma comunidade de homens livres.”[6]
Ou sobre a Economia que “o domínio sobre a mulher e os filhos e sobre a casa em geral, designado por economia, ou é exercido no interesse dos dominados ou num interesse comum a ambas as partes. Essencialmente é exercido no interesse dos dominados, como vemos nos demais saberes, como a medicina e a ginástica, em que apenas por acidente pode ser considerado o interesse dos que a praticam (…). O mestre de ginástica e o piloto visam o bem dos que se encontram sob a sua autoridade.[7]
Esta noção de governação da coisa pública como um exercício em que o que está em causa é o serviço público e não a cedência a interesses privados perdeu-se. Já Platão avisava, pela voz de Sócrates (o grego), que “os homens de bem não querem governar nem por causa das riquezas, nem das honrarias, porquanto não querem ser apodados de mercenários, exigindo abertamente o salário do seu cargo, nem de ladrões, tirando vantagem da sua posição. Tão-pouco querem governar por causa das honrarias, uma vez que não as estimam. (…) Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos. É com receio disso, me parece, que os bons ocupam as magistraturas quando governam (…). Efectivamente, arriscar-nos-íamos, se houvesse um Estado de homens de bem, a que houvesse competições para não governar, como agora as há para alcançar o poder, e tornar-se-ia então evidente que o verdadeiro chefe não nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela dos seus súbditos”.[8]
Paulo Guinote
[3] – Consulta feita em 23 de Dezembro de 2017.
[5] Nuno Alves, Mário Centeno e Álvaro Novo, “O Investimento em Educação em Portugal: Retorno e heterogeneidade”, in .Boletim Económico do Banco de Portugal (Primavera de 2010), p. 36.
[6] Aristóteles, Política, livro II, § 6, Vega, 2008, pp. 115-116
[7] Idem, ibidem, p. 115.
[8] Platão, República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s. d., p. 38.

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